O Natal e a Memória

 

Crônica Escrita por Dante  Mantovani

(Originalmente Publicado pelo Jornal “A Semana”, em Dezembro de 2011)

 

O escritor francês Marcel Proust (1871-1922) escreveu um livro de mais de 1400 páginas intitulado “Em busca do tempo perdido” publicado em sete partes entre 1913 e 1927 a partir daquilo que chamamos insight, ou dèja vu, que significa aquela memória surgida aparentemente do nada, em situações simples, cotidianas, que nos faz lembrar de uma série de acontecimentos, pensamentos, emoções, cheiros, sabores, sensações e ações diversas.

No caso de Proust, o que despertou sua memória para o livro foi o ato de banhar uma Madeleine, um biscoito muito popular na França do séc.XIX, numa xícara de chá. Cada pessoa tem sua Madeleine, ou seu pretexto para se lembrar das estórias de sua vida.

O convite de Maria Stela para escrever este texto funcionou como minha Madeleine, que me fez lembrar de um natal especial, passado no ano de 1998.

Em 1998, eu estava no ensino fundamental, 8º série, e tocava guitarra numa banda de Rock. Alguns dos integrantes dessa banda, que tinha o simpático nome de “Aneurisma” estavam na ceia. Havia uma imensa movimentação na Av. Brasil, onde eu morava, ao lado do Hotel São Paulo, a rua tomada de gente, impossibilitando a passagem de carros. O portão ficava encostado, mas ainda assim era bem fácil entrar na minha casa, que sempre tinha as portas abertas. Antes da ceia de natal, à tarde, tocamos muito rock pesado, como era praxe, de bandas como Iron Maiden, Metallica e Sepultura, para o terror da vizinhança.

Havia ainda um Senhor muito polido, um boticário, daqueles farmacêuticos de outros tempos, que entendia de tudo um pouco, e que receitava as mais diversas fórmulas para o alívio de quem tivesse algum moribundo na família. Ele vinha de São Roque-SP – Sr. Geraldo Arantes, já com seus 90 anos de idade, e era meu parceiro e mestre no violão, além de grande contador de histórias do período da República Velha (1889-1930). Meus amigos roqueiros não compreendiam como eu podia tocar rock e fazer duo com o Sr. Geraldo no mesmo dia, tocando “músicas de velho”, muito menos porque eu tocava trompete na Banda Municipal, aquele gênero estranho chamado “dobrado”. Tocávamos, eu e o Sr. Geraldo, nas festas de final de ano, até altas da madrugada; eram belas valsas, maxixes, boleros, tangos, serestas, serenatas. Aquilo formou minha sensibilidade musical, junto às composições de Zequinha de Abreu, Dilermando Reis, Canhoto, Francisco Tárrega, Fernando Sor e muitos outros.

Meu pai era nosso empresário, ou seja, organizava as apresentações na varanda de casa, providenciava os comes e bebes, as apresentações elogiosas e chamava todo mundo para assistir: hóspedes do hotel, funcionários, amigos, parentes, quem estivesse passando na rua, uma vez até uma viatura de polícia, com soldados que eram nossos conhecidos.

Minha mãe, cozinheira antológica, regava tudo com frango assado, lasanhas, macarrão alho e óleo, pernil assado, costela, maionese, pães, frios e claro, muito vinho. Tinto, branco e rosè. Não fazíamos distinção, embora o Sr. Geraldo tomasse apenas meia taça, dizia ele, para não “pegar faringite”.

O pessoal que trabalhava no hotel, dia de natal, ceava conosco, e também alguns hóspedes, como o Sr. Geraldo, e amigos que vinham de outras cidades e os de Paraguaçu que passavam para brindar conosco.

Naquela época, tudo era diversão. Quanto mais gente por perto, melhor era a festa.

Quando estamos reunidos com as pessoas que amamos, e daquelas por quem sentimos afinidades de espírito, nunca paramos para pensar que toda reunião desse tipo é um milagre.

Graças à memória, esses eventos não se perdem na infinitude do tempo e assim a curta duração de nossas vidas adquire sentido pleno. As pessoas que já se foram, para outras terras, ou para outros mundos, continuam vivas e próximas em nossa memória.

Dos roqueiros da banda, hoje cada um está em uma cidade diferente; o Sr. Geraldo faleceu em 2005, aos 96 anos; meu pai também se foi, em 2008, aos 87, deixando uma saudade infinita. Os funcionários daquela época também se foram, estão em outras cidades, cada qual tocando o seu barco. Até os PMs foram transferidos. Eu fui embora de Paraguaçu em 2002, para cursar faculdade, depois fiz especialização, mestrado, e agora, doutorado.

Desse pessoal todo, ao menos, restou minha mãe, que ainda está em Paraguaçu; ela continua sendo uma formidável cozinheira e servindo muito bem os hóspedes de hotel que vem para a cidade em datas especiais .

Espero que estejam todos bem e desejo-lhes um felicíssimo Natal neste ano de 2011!